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Samstag, 23. April 2011

O Instituto


Ainda envolto e matinal, vestiu-se mecânica e agilmente entre a cálida Primavera dos raios que chegavam pela fresca janela. O Sol nascia... E enjoado pelo entusiasmo da insónia, cansado pela noite, mas animado pelo dia, saíra da cama e esvoaçava pela ligeira neblina até à estação.

Era o primeiro dia de uma nova etapa, ou pelo menos, assim o via. Entre o bulício do pequeno terminal entrava no comboio. Outros como ele se dirigiam hoje para a capital. Num deserto de caras conhecidas, não reconheceu ninguém e sentou-se numa cadeira sozinha ao pé da janela. Entre os carris, ruídos e fumos deixava a sua terra natal, a sua família e um conjunto de poemas bem conhecidos para dar o primeiro passo em direcção à sua independência e vida adulta.

Sem saber ao certo o que o esperava, de mãos abertas e sem qualquer tipo de expectativa boa ou má, deixava na mala o seu passado e procurava agarrar como louco fugitivo sedento de liberdade, a incerteza desse futuro que tanto temia mas pelo qual tanto ansiava. O comboio partia. Comboio do inconsciente, onde depositava todas as suas esperanças, sobretudo de encontrar algo completamente diferente e distinto dos bucólicos campos e das vastas planícies que hoje abandonava na janela da carruagem.

Já aninhado no calor da carruagem, distraído e sonolento, ignorava os conterrâneos e deixava lentamente embalar-se pelo metrónomo da velha linha... assistindo desligado às verdes planícies salpicadas de sobreiros e aldeias distantes que entre os caminhos e riachos, velhas estradas e pontes, lhe corriam pelos olhos da janela embaciada.

E neste sono acordado fluíam-lhe as águas apressadas de um inquieto e fresco riacho primaveril onde corriam todas as escolhas e eventos, todas as encruzilhadas que o tinham trazido até ao dia presente. E nas faces desses fios de água rápidos e transparentes, incisivos reflexos desse Sol que não conseguia encarar encandeavam-no, ferindo-lhe os olhos claros. Rapidamente desviava o olhar e o pensamento acordando, mas deixava novamente o sonho seguir em frente, ignorando todos os condicionamentos, medos e manias que corriam nessa cortina de água, reflexos e luz que impossibilitado de agarrar ou fixar na sua mente, agora desagoava na foz desta nova era... Pim! A carruagem engasga-se e arrancado desse fluxo, subitamente acorda. O comboio chegara.

Animado pela adrenalina do sobressalto, sai rapidamente do comboio e ignorando as multidões, atravessa a estação parecendo invisível à confusão matinal na grande cidade. Familiar às velhas ruas, deambulava até ao seu objectivo ainda perdido nos labirintos do sonho que tivera.

Mas sim, queria virar a página! Em boa verdade, nem faria sentido de outra forma. Queria acima de tudo esquecer esse passado e abraçar com esperança renovada o futuro que se aproximava inquieto, o que só era possível no gentil embalo da ingénua ignorância de si mesmo, correndo sempre para os seus longos braços depois dos breves momentos de consciência que o assolavam, esquecendo-se por completo do que fora, do que era... Sempre nessa ilusão, na esperança daquilo que virá...

E foi em passo apressado, num misto de optimismo e distracção que caminhou pelas velhas ruas do antigo regime, e lhe afloravam algumas destas emoções e pensamentos, enquanto revia mentalmente todo o jogo burocrático envolvido no misterioso processo de inscrição.

No entanto, e à medida em que resolvia mentalmente estas preocupações prácticas, por maior que fosse o esforço para esse conveniente esquecimento, o prisioneiro sedento e afogueado temia em todas as ruelas e esquinas desta nova vida, a velha polícia do passado ou a denúncia anónima de uma qualquer memória há muito esquecida.

E foi neste inquieto estado de alma que subiu a velha colina e depois a escadaria até aos ferrugentos portões do Instituto.

André Cunha

Mittwoch, 31. März 2010

Há uma certa sensação associada a estas coisas, elas podiam levar-te a histórias. Mas tudo o que lembras é que a tua nostalgia te engana, nada foi como o reminesces.

Montag, 22. März 2010

Os sebastiacas trombos não deixaram partir

Os sebastiacas trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficamos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.

Mas a Hora deixada ao sono vil
Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fogo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Nao há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal.

---
Mário Cesariny (1923-2006)

Dienstag, 16. März 2010

Europa Unida (2)

Pegando no post do Filipe, devo dizer que há uma parte no discurso de Victor Hugo que me toca mais; é ela:

Original em francês:

«Un jour viendra où l'on verra ces deux groupes immenses, les États-Unis d'Amérique, les États-Unis d'Europe, placés en face l'un de l'autre, se tendant la main par-dessus les mers, échangeant leurs produits, leur commerce, leur industrie, leurs arts, leurs génies, défrichant le globe, colonisant les déserts, améliorant la création sous le regard du créateur, et combinant ensemble, pour en tirer le bien-être de tous, ces deux forces infinies, la fraternité des hommes et la puissance de Dieu!»


Tradução em inglês:

«A day will come when we shall see those two immense groups, the United States of America and the United States of Europe, facing one another, stretching out their hands across the sea, exchanging their products, their arts, their works of genius, clearing up the globe, making deserts fruitful, ameliorating creation under the eyes of the Creator, and joining together, to reap the well-being of all, these two infinite forces, the fraternity of men and the power of God.»

Dienstag, 9. März 2010

Mittwoch, 17. Februar 2010

A Cultura do Sofrimento

Em posts passados viram-me a mim, ateu, a defender o legado moral do Cristianismo.
Se bem se recordam, expliquei que as noções éticas básicas da nossa Civilização derivam da palavra do Novo Testamento, que revogou o "temor e tremor" a Deus da lei mosaica e institui como princípio fundamental o amor ao próximo, a tolerância, a dignidade da pessoa humana, e a clemência. Sem a formatação de pensamento que o Cristianismo nas suas duas variantes principais da Europa Ocidental forneceu na infância e juventude de praticamente toda a gente durante séculos, as concepções morais defendidas pelos filósofos mais influentes desde o Humanismo não teriam existido.
Locke não se teria lembrado de um estado de natureza em que não existe sociedade e o Homem vive em paz, colhendo os frutos da terra, até conhecer o crime e a cobiça e ter de se organizar e do suor do seu rosto comer o pão, e ver-se forçado a instituir um contrato social em que abdica da sua liberdade absoluta, que todos os homens terão em igual medida, para dar corpo a uma sociedade com regras aplicáveis a todos. Isto não soará vagamente ao pecado original e à expulsão de Adão e Eva do Paraíso? A corrupção das leis da natureza levando à justificação das leis do Homem?
Kant não se teria lembrado do imperativo categórico sem os ensinamentos de Cristo: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti, por exemplo.
Em suma, o Cristianismo deu-nos valores éticos incontornáveis que hoje, em grande parte, tomamos por absolutos independentemente de sermos crentes ou não - pura e simplesmente, porque fazem parte da nossa cultura e todo o nosso pensamento neles é formatado, como foi influenciado o pensamento das gerações antes de nós.
Contudo, não é da importância do cristianismo no pensamento de um ou outro que vos quero falar. Já noutras alturas vos disse o que acho de positivo na mundividência cristã, que tanto influenciou a nossa civilização. Mas hoje, vamos olhar para o outro lado da moeda. Hoje, quero dizer-vos aquilo que acho de mais abominável no Cristianismo, sobretudo no Catolicismo, e que considero que deixou cicatrizes graves e feias na nossa cultura.

Chamo-lhe a Cultura do Sofrimento.

O ponto de partida tem de ser este: Como as restantes religiões monoteístas, o Cristianismo - e em particular, o católico - é uma religião exigente. Deus - ou, para quem Deus seja secundário, a Igreja Católica - espera muito de ti, coisas difíceis, abstinências duras, comportamentos correctos a toda a hora, e muitos, muitos sacrifícios pessoais como prova de fé. É uma religião que coloca muita pressão sobre os seus crentes. (ex: Mateus, 5, 48: «Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial.»)
A violação dos deveres impostos pelo vínculo a Deus e à Igreja tem consequências não só na vida eterna, mas na vida temporal: o castigo perpétuo e constante pelas infracções cometidas é a culpa, que atrofia, a longo prazo, o estado de espírito de todos os que sentem que estão a violar os seus deveres morais e religiosos.
Ora, ainda que se assista a um grossamento das fileiras do ateísmo no último século, a verdade é que o sentimento de culpa está para ficar; e 2000 anos de educações marcadas pelas compreensões cristãs daquilo que é eticamente correcto só deixaram mais vincada na nossa mentalidade a - falsa - naturalidade do sentimento de culpa sempre que nos pareça que não fizemos sacrifícios suficientes ou que não conseguimos estar à altura do que era esperado de nós.
Vivemos numa Cultura de Sofrimento; numa cultura que se alimenta da ideia de que todo o sacrifício é um bom sacrifício, e que uma pessoa que se sacrifica até aos ossos e se dedica exclusivamente a servir os outros e a torná-los felizes é uma pessoa generosa e altruísta, e não um idiota. Serei o único a pensar que o facto de, na nossa civilização, palavras como selfless têm conotação positiva é algo de absolutamente perverso?
É isso que o Cristianismo trouxe de pior: a relativização do sofrimento individual face à satisfação alheia, de Deus, da Igreja, da Família, ou da comunidade. Alguém que não estiver disposto a aturar todo e qualquer sacrifício é considerado um egoista; e alguém que não se vir na obrigação de sofrer para agradar aos outros é posto de lado.
Vivemos numa cultura com um lado perverso: aquele que nos diz que, quanto mais nos reduzirmos e eliminarmos em prol dos outros, melhores pessoas somos; e que o sacrifício e o sofrimento, por mais inúteis que possam ser, desde que bem intencionados, são algo de bom.


«Nosso Senhor foi espancado, torturado, chicoteado, pontapeado, cuspido, humilhado e pregado a uma cruz para lá morrer em agonia - e fez isto por ti e por todos nós. E tu, meu egoísta nojento, o que estás disposto a sofrer pelos outros?»

Donnerstag, 4. Februar 2010

Aforismo


Ὁ βίος βραχὺς,
ἡ δὲ τέχνη μακρὴ,
ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς,
ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ,
ἡ δὲ κρίσις χαλεπή.

Mittwoch, 9. Dezember 2009

Glosando o Mote «ao ver a sua alma envolta no escuro»


Ao ver a sua alma envolta no escuro;
Vendo o bruto peso da sua cruz,
Perguntei se eu era passado ou futuro;
Se para ela era sombra ou se era luz.


Ao ver a sua alma envolta no escuro,
Vi que se tinha apagado o meu céu
- Dia que morre, e não amanheceu;
Barco que naufraga em porto seguro.

Vendo o bruto peso da sua cruz,
Quis erguê-la como se fosse minha;
Quis morrer antes de ter de a ver sozinha;
Mas recusou-mo - e por isso propus:

Perguntei se eu era passado ou futuro;
Se podia coroá-la com a manhã;
Se era o seu anjo ou uma esperança vã
E se as suas chagas causo, ou se as curo...

Se para ela sera sombra ou se era luz
Mo disseram seus olhos, negro espelho:
...«és o passado, um triste sonho velho,
Que o teu amor pelo Inferno conduz!»


Filipe Bastos, 09.12.2009

Dienstag, 17. November 2009

Freitag, 6. November 2009

Ausência


O que é isto?

Descobrimos a Luz nos reflexos do tumultuoso rio do Espírito e enchemos um frasco de perfume para nos recordarmos. A fonte secou... No meio da Escuridão usámos o frasco para nos encher a Alma. Então levantei-me para evitar que adormecesse e esquecesse... Mas quando me deitei tinha adormecido... Levantei-me calmamente e num beijo perguntei, lembras-te de mim?

André Cunha


Mittwoch, 4. November 2009

Hitokiri



In the mellow sheets of the shredded sunset

Lies the warrior standing on his sheathed sword
There he is, eyes wide shut
Listening to her singing
Of that blade which protects him from previous raping
There he stands, supporting himself on the invisible aggression
That shattered blade he wields unknowingly on his defense
Even after sworn against it
That broken mirror that does not exist
It's all he has left to be

Before him, the crowds walk
Ignoring this old young shadow
He recognizes some faces
Remembering his unexisting life
Sorrow and regret bloom within his urge
He grabs the handle, ready to attack the peace...
Does he refrain?
Two tears are shed, only he remains...

André Cunha



Freitag, 30. Oktober 2009

A Verdade é Soberana Nesta Casa


Vivi sempre na cabeça e agora conheço o coração. Cabeça esta que sempre aspirou a coração mas que agora por ele se deixou enjaular. Cabeça esta que dita desesperada os termos da minha clausura e opressão mas que este coração rejeita levando-me a labirintos por onde sempre caminhei mas onde nunca me perdi, labirintos que para mim eram corredores bem definidos.

Agora já não sei agarrar-me e não sei onde estou. Levaram a minha tocha e perco-me no negrume do meu interior e fujo, fujo para não encontrar aquilo que sei que me espera no fim deste tango de silêncios, deste carrocel desvairado.

Sempre me pintei como a uma tela mas agora as tintas misturaram-se e já não encontro as cores. As correntes da minha ética partem e o ferro negro é cada dia mais vermelho e a cabeça não suporta e castiga-me com enlaces divinos.

Nem sei porque professo estas palavras, já perdi o seu significado, quanto mais vejo mais odeio este retrato que agora tenta ganhar vida das sombras que o contemplam.

Sombras de formas indefinidas que bailam entre chamas num reflexo de água cristalina que provoca a sede daqueles que a bebem escorrendo em suores frios pelas faces cavadas por um escopro afiado.

E é este o estupro em que consiste o sentimento. É monstro que nos desonra a alma, qual besta amordaçada que rasga com os dentes os quistos que lhe afloram pelo corpo que nos destrói dentro da jaula da nossa ética até ao dia em que se dissolve no sangue de uma intenção não concretizada.

É este o preço dos why should I’s quando se abdicou da urgência dos now’s e não se avança a braçadas largas nas torrentes dos why not’s.

É esta a face do pânico, da angústia não revelada, da cabeça que renega o coração que a domina e se encerra entre smoke and mirrors em personificações daquilo que não se permite que nasça fora das grutas da alma.

Estou esgotado…

A verdade foi parida. É um rebento grande e grotesco que não cabe pelo sifão da minha alma. Tirei-a de cesariana mas só a vi envolta em vestes ensopadas com este meu sangue. A quem anuncio o nascimento? Terá nascido morta? Antes de ser verdade já será mentira? Tem vergonha, por isso está envolta ou será que é a mãe que dela se envergonha?

Nas ilhas aladas, num baptismo de rapina, a Oliveira só dá flor, nunca o fruto.

André Cunha

Donnerstag, 8. Oktober 2009

No Meu País...



As ruas do meu país são bonitas mas estão vazias, são largas e monumentais avenidas antigas que no entanto não acusam a mais leve passagem do tempo. Há muitas paradas, mas não se faz lixo ou mácula. As cidades são coerentemente eclécticas, não há uma rua igual à outra. Na malha ortogonal cruzam-se todas as eras e civilizações sem nunca se mesclarem entre si, cada rua é coerente consigo própria.

No meu país as pessoas discutem muito, mas nunca se zangam. Discutem racionalmente tudo o que é e não é passível de assim ser discutido. Filosofia, ciência, humanidades, amor, ódio,…

No meu país as pessoas não se conhecem, não frequentam as casas umas das outras, não há famílias. Reúnem-se em cafés, bares, salões e festas. Ninguém se apercebe do clima que caracteriza o meu país porque tudo é invariante a este. As pessoas prosseguem sempre os mesmos hábitos, vestem-se sempre da mesma forma.

Há ainda assim muita diversidade mas tal como as ruas, não se mistura como água e azeite e é assim nas pessoas, na natureza, nas paisagens, em tudo.

O meu país é uma ditadura mas ninguém sabe quem a dirige. Os serviços secretos são um poder sem rosto desta força desconhecida que o dirige.

O exército é imenso e interminável mas é incapaz, inapto para a luta. Vestem fardas ornamentadas e possuem inúmeros rituais. Há planeamento e rigor de todas as eventualidades e possíveis acontecimentos militares, mas ninguém, nesta massa humana sabe pegar numa arma para fazer a guerra.

Somos um país imenso e excessivamente organizado. Este nosso exército imenso e maquinal assusta as outras nações, não temos guerra.

Os serviços secretos asseguram aquilo que a inépcia do exército nunca poderia evitar e eliminam as possibilidades de conflito mas se nos invadem, vamos à vida.

No meu país, as crianças só saiem de noite. No meu país todos os cidadãos possuem uma infinidade de títulos, cargos e responsabilidades oficiais. Como toda a gente ocupa todos os cargo em todas as áreas não existe uma verdadeira hierarquia. Somos um povo orgulhoso e vaidoso, mas não nos lembramos porquê.

No meu país somos todos muito diferentes em aspecto, mas no fundo somos todos iguais. No meu país os sentimentos não florescem, transformam-se em livros, poemas, tratados, artigos, ensaios… Temos milhões de bibliotecas intermináveis em que toda esta obra acaba depositada e esquecida. As bibliotecas são tão extensas, os seus corredores tão longos e labirínticos que ninguém ousa visitá-las, foram projectadas com esse propósito.

No meu país não temos telefones, só escrevemos cartas. Não existe televisão mas fazemos muito cinema, teatro e televisão também só que os filmes nunca são terminados e as cenas sucedem-se, as peças de teatro são ensaiadas sem término, os programas televisivos são gravados e regravados mas nunca são lançados. Assim é toda a arte no meu país.

Ensaiamos, experimentamos, pensamos e concebemos mas nunca terminamos, a obra é por definição inacabada, as obras não são lançadas apesar de termos sempre datas planeadas para o fazer, datas essas que se prolongam pelos séculos. Temos grandes movimentos artísticos, orquestras, estúdios, ateliers, escolas… As orquestras não actuam, ensaiam; os pintores não expõem, experimentam porque nenhum artista consegue obter aquilo que imagina, a perfeição não converge, então para sempre ficam no estado de concepção.

Ninguém sabe ao certo quantas pessoas existem neste país meu. Como as pessoas fazem um sem fim actividades e ofícios e ocupam uma infinidade de títulos e cargos e hierarquias, toda a gente é tudo e nada, parecemos ser biliões mas podemos não passar de uma dezena, ninguém sabe.

No meu país as pessoas têm muitos nomes, como se sentem presas por apenas um, adoptam milhares de nomes, não há minuto que passe sem que um novo nome lhes surja.

No meu país as pessoas não morrem e são sempre jovens fisicamente. Acontece que um dia ficam simplesmente catatónicas. Não as enterramos porque estão vivas, então ficam nas ruas como estátuas, a nossa única arte que se conclui porque ninguém distingue estas pessoas de objectos inertes.

No meu país não acreditamos em Deus mas temos grandiosos templos de todas as religiões; tal como a maioria dos sítios neste meu país, encontram-se quase sempre vazios.

As pessoas passam os dias nas ruas vazias e extensas a discutir e a passear.

São as crianças que constroem o meu país. De noite, quando saiem, invadem uma qualquer zona e erigem quarteirões, ruas e bairros inteiros numa só noite.

Os serviços secretos que tudo controlam não as conseguem ver, aliás a partir dos 12 anos, as crianças no meu país são adultas e deixam de ver as crianças, os adultos não as vêem, só se recordam delas da sua infância.

Por isso ninguém sabe onde vivem, donde vêm e quem são. Rumores falam dos esgotos monumentais mas ninguém lá vai.

As pessoas do meu país como conquistaram a imortalidade, não têm necessidades fisiológicas. Não comem, não defecam, não nada. Ainda assim temos casas de banho, hospitais e todo o tipo de estrutura associadas à natureza do animal humano. Essencialmente assim acontece porque temos que ter profissões.

Por exemplo, temos médicos mas nenhum deles saberá intervir se necessário. São sábios e escrevem longos tratados e extensos artigos profusamente descritos até ao mais ínfimo detalhe, ilustrações, cálculos e deduções mas nunca ninguém na realidade experimentou nada.

Não temos cemitérios, as pessoas vão ficando pelas ruas, tiram-nas do caminho e usam-nos como ornamento nos parques e jardins porque não morrem, ficam catatónicas.

Há muitas mães no meu país mas nenhuma delas sabe quem são os seus filhos. Não se lembram que os tiveram e como tal nem sabem que o são, mães. Os adultos no meu país não se despem, vestem sempre a mesma roupa, trajes elaborados que diferem em estilo, era e espírito mas que são sempre cuidadosamente elaborados mesmo que fossem andrajos. Podem andar sempre imutáveis porque não possuem necessidades fisiológicas.

Tivemos três guerras no meu país. Tivemos uma primeira guerra ideológica que terminou num armistício que fundiu as forças opositoras.

A segunda guerra foi um artifício de propaganda, nunca tendo ocorrido na realidade. A imprensa anunciou a guerra, as tropas foram mobilizadas e todos acreditam que houve porque somos um país tão grande que toda a gente ouviu falar de alguém que esteve nessa guerra fora das nossas fronteiras mas ninguém conhece ninguém que realmente lá tenha estado até porque nunca ninguém neste país se aproximou sequer das fronteiras do nosso extenso território. Foi uma guerra inventada pelos serviços secretos.

Por fim, a última guerra que nos assolou foi uma invasão estrangeira. O inimigo enviou milhões de soldados mas nunca os suficientes para fazer face aos nossos territórios intermináveis, às nossas cidades infinitas, havia sempre mais ruas, mais esquinas, mais avenidas e o exército do inimigo acabou por se desfazer na nossa imensidão como o exército francês na Rússia. Ninguém sabe porque fomos invadidos ainda hoje, muito se escreve sobre o assunto.

Diz-se à boca pequena que vivemos em guerra civil permanente mas ninguém sabe ao certo entre quem e não há sinais óbvios de guerra civil. Dizem os rumores que se deve à intervenção dos serviços secretos na gestão do conflito, que cuidadosas operações de limpeza e abafamento são levadas a cabo e nesses sítios as pessoas supostamente discutem mais ou ficam silenciosas e as ruas supostamente são mais limpas, mas na realidade não passam de boatos porque ninguém neste país sabe usar uma arma ou levantar os braços para agredir quem quer que seja mas tornámo-nos vítimas do nosso poder sem rosto.

Não há carros no meu país. Só andamos a pé. Os carros não servem para nada precisamente porque o país é tão extenso que ir a qualquer lado a pé ou de carro é irrelevante, como somos imortais o tempo não significa nada para nós e como tal nunca temos muita pressa de chegar onde quer que seja. Há ainda assim, quem tente atravessar o país inteiro a pé.

Não conhecemos outros países embora tenhamos milhões de embaixadores, diplomatas, geógrafos, mapas e estudos étnicos mas nunca ninguém foi a lado nenhum na realidade. Ficámos fascinados aquando da última guerra precisamente porque fomos visitados mas ainda hoje há dúvidas se esse invasor não tenha surgido meramente dentro do nosso país a partir dos fenómenos de diferenciação que já descrevi.

Há auroras boreais no meu país. Como as realidades não terminam neste meu país, não temos museus porque simplesmente não percebemos o conceito. O tempo não começa nem termina nem se move, não há velho nem novo, há sempre mais, mas tudo o que houve se mantém. Não sabemos o que é antigo, não sabemos o que é não ser o que já se foi. Existe sempre tudo.

André Cunha

Sonntag, 17. Mai 2009

Arte moderna e clichés

Cruzei-me com esta fotografia na net e veio-me imediatamente à cabeça a ideia (não minha) que "arte moderna = eu conseguiria fazer aquilo + pois, mas não fizeste". Mas a minha pergunta é se é possível uma coisa ser cliché sem nunca ter sido feita antes. Talvez arrisque dizer que sim.
Óbvio que sei que este gag dos post-its já é muito velho, provavelmente tão velho quanto os próprios papeis amarelos. Mas pergunto-me, e se fosse feito hoje pela primeira vez seria cliché à mesma? Ou seja, é o ambiente artístico que condiciona uma peça "nova" ou é apenas a novidade desta mesma?