Como grande parte de vós saberá, não tive nunca uma educação religiosa nem sou particularmente dado a beatices, apesar do meu interesse nas diversas religiões, sobretudo as monoteístas.
Contudo, o nosso único prémio Nobel da literatura - sinceramente, ainda hoje, nem percebi porquê... - parece não deixar de dar provas de que não só é ateu, que bom para ele, mas que deseja fazer uma cruzada de ignorância contra as religiões bíblicas.
Pior que uma cruzada medieval de fanatismo religioso é a cruzada ignorante, em pleno século XXI, de um fanático ateu que devia estar calado, não opinar sobre aquilo que desconhece, e perceber que ter um Nobel não lhe dá infalibilidade - para isso, estupidamente, teria de ser Papa.
Então o nosso amigo pretensio e inflado acha que a Bíblia é um manual de perversidade, de maldade, daquilo que de pior há na «natureza humana».
Antes de mais, aluda-se ao uso da expressão filosófica que Saramago usa, reconhecida até pelos metafísicos existencialistas como filosoficamente errada por pressupor um conjunto de características comuns a todos os seres humanos, inalteráveis e eternas. O que por si pressupõe que essa humanidade homogénea não se possa alterar, e que tenha sido já "criada" assim - mazinha!
Ergo, o nosso amigo ateu está a dizer que a Bíblia constitui um manual de maldade para uma humanidade naturalmente má. E ao fazê-lo, descuida-se com ideias cliché metafísicas:
1) Descuida-se com a pressuposição de que há uma «essência» humana eterna.
2) O que pressupõe o criacionismo.
3) Descuida-se ao arrogar-se o direito de fazer juízos de valor sobre o conteúdo de um texto que não conhece, aparentemente, o suficiente.
4) Descuida-se, ao apreciar condutas sugeridas na Bíblia como «boas» ou «más» - porque, a não ser que Saramago seja leitor assíduo dos filósofos morais mais influentes do pós-guerra, libertos de quaisquer tendências divinistas na sua filosofia ética, está a apreciar a Bíblia de acordo com os critérios do Bem ou do Mal da sua Civilização. Que são os critérios de fundamento metafísico e até teológico legados pelo Cristianismo baseado no texto religioso que critica.
5) Descuida-se, em geral, enquanto velho senil, incontinente e parvo que é.
É verdade que na Bíblia encontramos coisas simpáticas como o massacre dos primogénitos egípcios para libertar os judeus (Êx.,11, 5), a prescrição da exclusão de homens bastardos ou castrados das assembleias religiosas ( Deu., 23, 1-2), a exclusão de leprosos da comunidade (Num., 5, 2), a prescrição da pena de morte para adúlteros e homossexuais (Lev., 20).
Ora, a maior parte dos fanáticos ateus é cega o suficiente para se ficar por aqui, pelo Antigo Testamento, sem preocupações de interpretação ou de compreensão.
E que tal uma excursão pelo Novo Testamento?
Vemos a maldade de afirmar a humanidade como a luz do mundo (Mateus, 5, 14); a crueldade da rejeição da vingança (Mateus, 5, 38); a perversidade de afirmar as crianças como a esperança de Deus (Mateus, 19, 13); vemos o horror da proclamação da clemência como valor em si (João, 8, 7) e vemos a repugnância do perdão (Lucas, 17, 3).
Uma pessoa pode não concordar com grande parte do código moral contido na Bíblia. Mas ninguém deve ter o atrevimento de julgar um livro dessa dimensão e profundidade como um todo, dizendo que é tudo muito bom ou tudo muito mau.
O pior é que Saramago julga as partes menos simpáticas da Bíblia de acordo com preceitos das partes mais bonitas, que vagueiam no nosso subconsciente colectivo há dois mil anos.
É preciso ser-se um ignorante completo para fazer aquele tipo de afirmações.
Entristece-me que seja aquele o nosso único Nobel da literatura. Mas se quer escrever, escreva e cale-se.