Samstag, 6. November 2010

Julgamento


Num salão húmido de basalto coberto pela poeira legada pelas gerações das Eras do Mundo que se sucederam, pingava água gelada, algo ressonava, rangiam as dobradiças, e fungava impaciente o Juiz. Subiu ao estrado e sentou-se no cadeirão.
Todos se levantaram - os Autores, a sua defesa e o Réu.
Colocou os óculos, fungou, e leu:

«Após curta, irreflectida e arbitrária apreciação dos diferentes argumentos apresentados exclusivamente pelos Autores, o Tribunal decidiu condenar o Réu, D..., por quem nunca chegou a ter grande simpatia, à morte por esquecimento.»

Fungou e tossiu e fungou de novo. Os Autores e a sua defesa sussurravam palavras de alegria, o Réu aceitou tristemente o seu destino, e o advogado da sua defesa ressonava através da sua bocarra escancarada. Escorriam fetidamente gotas de água pelas estátuas e baixo-relevos negros, outrora lembranças do suspiro enamorado da Criação, hoje quebradiças testemunhas mudas da sua execução sumária, da farsa do seu julgamento.
O Juiz limpou o muco à manga da toga e continuou:

«Tendo o Juiz proibido toda e qualquer argumentação da parte do Réu, dada a sua insolência em permanecer doente, mudo e cego, e não tendo a sua defesa chegado a acordar, o Réu é considerado culpado pelos crimes que agora se passam a enunciar:»

O Velho estremeceu de frio e desespero, as suas pesadas algemas afundavam-se nas suas barbas brancas incomensuráveis que se iam fiando e desfiando em nuvens. Os seus pequenos olhos escuros gritavam mágoa, e a sua mágoa gritava de injustiça. E no entanto, seguiu-se a enumeração das atrocidades por que agora o sentenciavam. O Juiz tossiu e continuou:

«Infanticídio em massa de primogénitos; filicídio premeditado e preparado com particular perfídia; coacção a um pai para que matasse o próprio filho; sucessivos massacres por afogamento diluviano ou por bombardeamentos de enxofre e fogo; omissões que resultaram na morte dos seus seguidores nas mandíbulas de leões; incitamento à homofobia, à misoginia, à xenofobia; tortura em massa pelo sentimento de culpa e pelo terror de um suposto fogo; degradação dos Autores à ignorância e ao preconceito; burla espiritual ao convencer os Autores da existência de uma contraprestação fictícia pela vida de anhos que os coagia a levar; mentiras reiteradas, monumentais, universais e ruinosas com sequelas ainda por determinar no pensamento dos Autores...»

O Velho estremeceu de novo, eles não sabem o que estão a fazer. O Juiz prosseguiu:

«... e porque, e este foi o motivo determinante, qualquer papel do Réu no nosso novo mundo é impensável. Dispensamos quem nos criou a nós. A Nós, os Autores irados e foragidos, e a Nós, o Juiz débil e corrupto e câmara decadente da aplicação da anomia. Por termos sido tão maltratados, pensamos chegada a altura de exercer a injustiça popular e linchar o Pai, nesta mesma Sala. A Nossa era chegou. Seja Ele esquecido.»

E o Velho, doente, curvo, frágil, mirrado e espancado, teria chorado mais se pudesse ter visto o que lhe aconteceu. Mas era cego. E teria soluçado e dito últimas palavras, de conforto ou de despedida. Mas era mudo.
Esvaneceu-se. E as nuvens dissolveram-se, como se nunca tivessem existido.





Rafael Silveira Neves

1 Kommentar:

Hélder Santos Correia hat gesagt…

Adorei o trabalho "administrativo" de teres etiquetado este texto como "Insanidades"lol

é o que me apraz dizer. ;)