Samstag, 31. Oktober 2009

Glosando o Mote «Ele viu a Alma da Vida»


Mote


Ele viu a Alma da Vida,
Adormecida no trono,
E acordou-a do seu sono
C'um beijo de despedida.


Glosa


Ansiando dançar nos ventos
E cantar até estar rouco,
Um dia um poeta louco
Afogou-se em pensamentos.
E andou na estrada tecida
A partir dos sonhos do Homem;
E nas luzes que o consomem
Ele viu a Alma da Vida.

Colheu rosas de cristal
- de cristalizado amor -
Para depor no fulgor
Da Torre celestial
De mudos muros de sono,
Onde pelos sonhos vela
Sua Guardiã, tão bela,
Adormecida no trono.

Nos doces olhos fechados
Encerrava a luz dos céus;
E o poeta viu que eram seus
Os sonhos que eram guardados.
Vendo o Anjo e o seu abandono,
Quis cantar aos ventos, rouco,
Que a amava e que era louco,
E acordou-a do seu sono.

«Eu sou o Sonho, a Alma da Vida,
Vagueio, em sono profundo.
Eu sou a poesia do Mundo;
Luz do dia - anoitecida;
E a tua noite - amanhecida.»
Disse, sorrindo, a Guardiã.
E sumiu-se, - até à manhã,
C'um beijo de despedida.
Filipe Bastos

Freitag, 30. Oktober 2009

A Verdade é Soberana Nesta Casa


Vivi sempre na cabeça e agora conheço o coração. Cabeça esta que sempre aspirou a coração mas que agora por ele se deixou enjaular. Cabeça esta que dita desesperada os termos da minha clausura e opressão mas que este coração rejeita levando-me a labirintos por onde sempre caminhei mas onde nunca me perdi, labirintos que para mim eram corredores bem definidos.

Agora já não sei agarrar-me e não sei onde estou. Levaram a minha tocha e perco-me no negrume do meu interior e fujo, fujo para não encontrar aquilo que sei que me espera no fim deste tango de silêncios, deste carrocel desvairado.

Sempre me pintei como a uma tela mas agora as tintas misturaram-se e já não encontro as cores. As correntes da minha ética partem e o ferro negro é cada dia mais vermelho e a cabeça não suporta e castiga-me com enlaces divinos.

Nem sei porque professo estas palavras, já perdi o seu significado, quanto mais vejo mais odeio este retrato que agora tenta ganhar vida das sombras que o contemplam.

Sombras de formas indefinidas que bailam entre chamas num reflexo de água cristalina que provoca a sede daqueles que a bebem escorrendo em suores frios pelas faces cavadas por um escopro afiado.

E é este o estupro em que consiste o sentimento. É monstro que nos desonra a alma, qual besta amordaçada que rasga com os dentes os quistos que lhe afloram pelo corpo que nos destrói dentro da jaula da nossa ética até ao dia em que se dissolve no sangue de uma intenção não concretizada.

É este o preço dos why should I’s quando se abdicou da urgência dos now’s e não se avança a braçadas largas nas torrentes dos why not’s.

É esta a face do pânico, da angústia não revelada, da cabeça que renega o coração que a domina e se encerra entre smoke and mirrors em personificações daquilo que não se permite que nasça fora das grutas da alma.

Estou esgotado…

A verdade foi parida. É um rebento grande e grotesco que não cabe pelo sifão da minha alma. Tirei-a de cesariana mas só a vi envolta em vestes ensopadas com este meu sangue. A quem anuncio o nascimento? Terá nascido morta? Antes de ser verdade já será mentira? Tem vergonha, por isso está envolta ou será que é a mãe que dela se envergonha?

Nas ilhas aladas, num baptismo de rapina, a Oliveira só dá flor, nunca o fruto.

André Cunha

Provérbio islâmico I



«Nenhum caminho que leve a um amigo é demasiado íngreme.»

provérbio árabe

O Divã Islâmico



As-salaam Aleikum.


Declara-se assim inaugurada a ala islâmica do nosso Jardim. Desde o momento da criação deste blog, já se previa como necessário que viéssemos a colocar posts de poesia, filosofia e cultura árabe, turca ou persa.

Agradecimentos ao Iko por me ter inspirado a este acto inaugural pela sua generosa oferta de um livro sobre Omar Khayyam.

A cultura islâmica é rica, e os bloguistas desta casa hão-de muito conversar e discutir com deleite teses de Averróis, ensinamentos do Profeta e versos de Rumi.


Maktub.

Mittwoch, 28. Oktober 2009

Não sei quanto a vocês, mas põe-me nervoso...

... o facto de neste momento o futuro de toda a União Europeia depender de uma decisão dos 15 juízes-conselheiros do Tribunal Constitucional checo. Parece que eles próprios ainda estão muito divididos quanto à não inconstitucionalidade do Tratado de Lisboa, já que adiaram a sua decisão para a próxima semana.

Coisa chata é a atitude do Presidente Klaus, eurocéptico que rejeita a Carta Europeia de Direitos Humanos por recear que dê aos descendentes de alemães do território dos Sudetas o direito de reclamar para si as terras dos seus antepassados expulsos pelos checoslovacos depois da Segunda Guerra Mundial.

Alguem me quer lembrar porque é que estes tipos estão na UE?

Dienstag, 20. Oktober 2009

Resposta ao Manifesto anti-Saramago

Eu diria que há, sensivelmente, duas maneiras de olhar para as escrituras. Ou a bíblia (como tantos outros textos religiosos) é uma das primeiras tentativas da humanidade à filosofia, à literatura, à cosmologia, à astronomia e até à medicina ou então é um texto de inspiração divina que existe para guiar o Homem à salvação.
Seja qual for, a bíblia é um documento de incomensurável valor, que sem sombra de dúvida, nos diz muito sobre as nossas origens e os primórdios da civilização.
No entanto, os anos trouxeram homens que, por seu próprio mérito contribuíram de tal modo para as acima enunciadas disciplinas que não só ergueram novos paradigmas como demonstraram o quão inadequados eram os anteriores. Estes homens são os degraus na escada da história da humanidade.

Eu defendo a ideia de que um livro escrito com inspiração divina que possa ter tantas falhas não é um livro escrito com inspiração divina. E não hesito em dizer também, que também o velho testamento tem passagens lindíssimas; e também não me custa dizer que um dos conceitos que Jesus ensina é o mais sinistro de todos os conceitos alguma vez encontrados nas escrituras.
Nem com todo o genocídio, violação e infanticídio no antigo testamento há uma menção do castigo dos mortos. A punição infinita por crimes finitos, crimes cometidos em vida, por acreditar no deus errado, por tudo e mais alguma coisa.

"Tenho más notícias para ti, és um ser impuro, pecador e estás condenado ao fogo eterno. Isto por crimes que foram cometidos antes do teu tempo, por crimes que foram cometidos por outras pessoas, o pecado original. (...) Mas também tenho boas noticias, se fizeres como eu mando e obedeceres a estas 10 regras, vais ter uma recompensa para além do que possas imaginar."

O medo do inferno que é incutido às crianças é algo de muito muito perverso. E espero que esta falácia seja óbvia a todos.

A bíblia é claramente a primeira das duas hipóteses. Custa-me saber que há homens meus contemporâneos que a tomam por algo diferente.
Quanto ao Saramago, não o chamaria ignorante e não me atreveria a dizer que ele não conhece a bíblia. Agora, a abordagem dele é indício de um homem velho e amargo, o que não o torna necessariamente errado.

Montag, 19. Oktober 2009

Manifesto anti-Saramago

Como grande parte de vós saberá, não tive nunca uma educação religiosa nem sou particularmente dado a beatices, apesar do meu interesse nas diversas religiões, sobretudo as monoteístas.
Contudo, o nosso único prémio Nobel da literatura - sinceramente, ainda hoje, nem percebi porquê... - parece não deixar de dar provas de que não só é ateu, que bom para ele, mas que deseja fazer uma cruzada de ignorância contra as religiões bíblicas.
Pior que uma cruzada medieval de fanatismo religioso é a cruzada ignorante, em pleno século XXI, de um fanático ateu que devia estar calado, não opinar sobre aquilo que desconhece, e perceber que ter um Nobel não lhe dá infalibilidade - para isso, estupidamente, teria de ser Papa.

Então o nosso amigo pretensio e inflado acha que a Bíblia é um manual de perversidade, de maldade, daquilo que de pior há na «natureza humana».

Antes de mais, aluda-se ao uso da expressão filosófica que Saramago usa, reconhecida até pelos metafísicos existencialistas como filosoficamente errada por pressupor um conjunto de características comuns a todos os seres humanos, inalteráveis e eternas. O que por si pressupõe que essa humanidade homogénea não se possa alterar, e que tenha sido já "criada" assim - mazinha!
Ergo, o nosso amigo ateu está a dizer que a Bíblia constitui um manual de maldade para uma humanidade naturalmente má. E ao fazê-lo, descuida-se com ideias cliché metafísicas:
1) Descuida-se com a pressuposição de que há uma «essência» humana eterna.
2) O que pressupõe o criacionismo.
3) Descuida-se ao arrogar-se o direito de fazer juízos de valor sobre o conteúdo de um texto que não conhece, aparentemente, o suficiente.
4) Descuida-se, ao apreciar condutas sugeridas na Bíblia como «boas» ou «más» - porque, a não ser que Saramago seja leitor assíduo dos filósofos morais mais influentes do pós-guerra, libertos de quaisquer tendências divinistas na sua filosofia ética, está a apreciar a Bíblia de acordo com os critérios do Bem ou do Mal da sua Civilização. Que são os critérios de fundamento metafísico e até teológico legados pelo Cristianismo baseado no texto religioso que critica.
5) Descuida-se, em geral, enquanto velho senil, incontinente e parvo que é.

É verdade que na Bíblia encontramos coisas simpáticas como o massacre dos primogénitos egípcios para libertar os judeus (Êx.,11, 5), a prescrição da exclusão de homens bastardos ou castrados das assembleias religiosas ( Deu., 23, 1-2), a exclusão de leprosos da comunidade (Num., 5, 2), a prescrição da pena de morte para adúlteros e homossexuais (Lev., 20).
Ora, a maior parte dos fanáticos ateus é cega o suficiente para se ficar por aqui, pelo Antigo Testamento, sem preocupações de interpretação ou de compreensão.
E que tal uma excursão pelo Novo Testamento?
Vemos a maldade de afirmar a humanidade como a luz do mundo (Mateus, 5, 14); a crueldade da rejeição da vingança (Mateus, 5, 38); a perversidade de afirmar as crianças como a esperança de Deus (Mateus, 19, 13); vemos o horror da proclamação da clemência como valor em si (João, 8, 7) e vemos a repugnância do perdão (Lucas, 17, 3).

Uma pessoa pode não concordar com grande parte do código moral contido na Bíblia. Mas ninguém deve ter o atrevimento de julgar um livro dessa dimensão e profundidade como um todo, dizendo que é tudo muito bom ou tudo muito mau.
O pior é que Saramago julga as partes menos simpáticas da Bíblia de acordo com preceitos das partes mais bonitas, que vagueiam no nosso subconsciente colectivo há dois mil anos.
É preciso ser-se um ignorante completo para fazer aquele tipo de afirmações.
Entristece-me que seja aquele o nosso único Nobel da literatura. Mas se quer escrever, escreva e cale-se.

Sonntag, 11. Oktober 2009

Em dia de eleições, calha bem.

Naturalmente, pode have excepções à regra, mas penso que...

Somos a geração do desapontamento, da descrença, da falta omnipresente de fé.
Há duas gerações, eram as ninhadas da infantilidade política alimentada pelo paternalismo de um Regime do tipo que nunca dura muito tempo. Infantis o suficiente para acreditarem estupidamente que o papá da pátria efectivamente tomava conta de tudo, e que o fazia bem.

A geração que nos antecedeu é a dos que tiveram esperança demais, depois desiludiram-se, e depois ficaram ocos no próprio cinismo. Ou então dos que permaneceram presos às suas convicções sem se darem conta de que o país mudou.

Mas nós somos os piores. Somos os que não aprenderam nada com erros dos avós e dos pais. Padecemos dos mesmos males que eles no breves momentos em que não vegetamos no descontentamento e na descrença.

À Direita ou à Esquerda, poucas pessoas conheço que sintam uma real confiança no nosso sistema de partidos. Toda a gente parece concordar, em termos mais ou menos correntes, que a teoria, encerrada na constituição, é muito bonita, "mas na prática"....
Acho que a grande causa da decadência da nossa democracia - a par de certos escândalos que são mais próprios de um tablóide que de um post desta digna comunidade - são os cancros que levam a que ninguém chegue a identificar-se plenamente com esta ou aquela força política.

Os maiores cancros da Esquerda portuguesa são dois: o radicalismo e a ingenuidade.
É o radicalismo de celebrar festivamente que uma mulher possa interromper a sua gravidez por escolha própria, em vez de chorar a necessidade da despenalização do aborto e sentir condolência pelo homem que, sem poder de decisão no assunto por ninguém conseguir encontrar uma solução ética ou jurídica para a sua posição, perderá o filho que queria ter e teve ilusões de imaginar no ventre da sua mulher.
É o radicalismo de defender com garras e dentes a legalização do consumo de drogas leves como se fosse um grande triunfo da Humanidade poder fumar charros; e não como se fosse o instrumento mais eficaz e potente para lutar contra o tráfico criminoso e gerador de violência, deixando o Estado ter o controlo total da comercialização de erva ou haxixe.
É o radicalismo de defender que toda a gente deve poder casar e adoptar, calando todas as objecções que dizem respeito ao são desenvolvimento dos adoptandos, e acusando quem as faz, recorrendo a ciências tão metafísicas e absurdas como a biologia, de conservadorismo salazarento.
E depois, há a sua triste ingenuidade.
É a ingenuidade de acreditar que qualquer um chegaria onde quisesse pelo trabalho, não fossem as trincheiras invisíveis da luta de classes; a ingenuidade de acreditar que há uma cisão na sociedade entre pessoas boas e trabalhadoras e pessoas ricas e poderosas. E perdem-se na ingenuidade de querer forçar uma igualdade artificial, ao estilo Robin Hood, perdendo as suas raízes ideológicas ao declararem uma guerra mais cerrada à riqueza, e não à pobreza e à exploração.

O maior cancro da Direita portuguesa é, assim o vejo, apenas um: a misantropia de acreditar que há pessoas boas e trabalhadoras, e pessoas preguiçosas e más. E obviamente, a maioria dos apoiantes deste tipo de ideologia diluída está incluida invariavelmente no lado dos «bons».
É a misantropia que os conduz - a de pensar que quem aborta, quem se prostitui, quem é homossexual, quem está desempregado há anos e décadas, quem vive de ajuda do Estado ou toma drogas tem geralmente a culpa de se encontrar na situação em que se vê, ou que tem algo de muito errado, feio e imoral que a sociedade tem de ignorar, desprezar, ou reprimir. E perdem-se na misantropia de achar que a única solução para a sociedade, pejada de pecado e torpeza, é dar o máximo de liberdade económica a toda a gente, porque a iniciativa privada é mágica, fuciona sempre - até há ciências sociais que o provam com gráficos catitas, vejam lá como isso é cómodo! - e acabará por dar a todos o que precisam; perdem-se na misantropia de acreditar que a solução para o resto dos problemas da sociedade é proibir, oprimir ou excluir - perdendo assim também as raízes cristãs que hipocritamente afirmam ter, relativizando o amor ao próximo e a humanidade que é a jóia esquecida da coroa do cristanismo (ou pelo menos... da mensagem de Cristo...).

Há que ouvir o que diz RAWLS. O professor de Harvard acusa a maior parte dos sistemas de fundamento democrático de se terem focado demasiado num de dois ideais trazidos pelo liberalismo político e tornados em estandartes da Revolução Francesa:
Os sistemas jacobino - por razões menos simpáticas, também conhecido por sistema "do Terror" - e soviético ou de inspiração marxista concentraram-se tanto na igualdade que a tornaram num eufemismo para opressão e uniformização à força. Mas traziam consigo o abandono do mérito em detrimento da opinião do colectivo.
As monarquias e repúblicas económica e socialmente liberais dos séculos XIX e XX tornaram a liberdade individual no seu grito de guerra. Fizeram do mérito uma justificação perversa manterem os olhos fechados para a exploração, para a miséria, e para o feudalismo socio-económico.
O que RAWLS sustenta é que, mais que igualdade ou liberdade, nos devemos concentrar na solidariedade, garantindo o maior espaço de liberdade individual possível compatível com a liberdade alheia, e assegurando a todos:
Não uma igualdade social;
Não uma liberdade económica e individual absoluta;
Mas uma igualdade de oportunidades para todos, de modo a que cada um possa ter uma possibilidade justa de ascender na vida - o que naturalmente não implica uma visão completamente liberal, antes um investimento massiço e prioritário no capital humano e na luta à miséria. O Estado não é mínimo, na proposta de RAWLS. É máximizador do potencial de todos.

Alguém lhe devia dar ouvidos.

Donnerstag, 8. Oktober 2009

No Meu País...



As ruas do meu país são bonitas mas estão vazias, são largas e monumentais avenidas antigas que no entanto não acusam a mais leve passagem do tempo. Há muitas paradas, mas não se faz lixo ou mácula. As cidades são coerentemente eclécticas, não há uma rua igual à outra. Na malha ortogonal cruzam-se todas as eras e civilizações sem nunca se mesclarem entre si, cada rua é coerente consigo própria.

No meu país as pessoas discutem muito, mas nunca se zangam. Discutem racionalmente tudo o que é e não é passível de assim ser discutido. Filosofia, ciência, humanidades, amor, ódio,…

No meu país as pessoas não se conhecem, não frequentam as casas umas das outras, não há famílias. Reúnem-se em cafés, bares, salões e festas. Ninguém se apercebe do clima que caracteriza o meu país porque tudo é invariante a este. As pessoas prosseguem sempre os mesmos hábitos, vestem-se sempre da mesma forma.

Há ainda assim muita diversidade mas tal como as ruas, não se mistura como água e azeite e é assim nas pessoas, na natureza, nas paisagens, em tudo.

O meu país é uma ditadura mas ninguém sabe quem a dirige. Os serviços secretos são um poder sem rosto desta força desconhecida que o dirige.

O exército é imenso e interminável mas é incapaz, inapto para a luta. Vestem fardas ornamentadas e possuem inúmeros rituais. Há planeamento e rigor de todas as eventualidades e possíveis acontecimentos militares, mas ninguém, nesta massa humana sabe pegar numa arma para fazer a guerra.

Somos um país imenso e excessivamente organizado. Este nosso exército imenso e maquinal assusta as outras nações, não temos guerra.

Os serviços secretos asseguram aquilo que a inépcia do exército nunca poderia evitar e eliminam as possibilidades de conflito mas se nos invadem, vamos à vida.

No meu país, as crianças só saiem de noite. No meu país todos os cidadãos possuem uma infinidade de títulos, cargos e responsabilidades oficiais. Como toda a gente ocupa todos os cargo em todas as áreas não existe uma verdadeira hierarquia. Somos um povo orgulhoso e vaidoso, mas não nos lembramos porquê.

No meu país somos todos muito diferentes em aspecto, mas no fundo somos todos iguais. No meu país os sentimentos não florescem, transformam-se em livros, poemas, tratados, artigos, ensaios… Temos milhões de bibliotecas intermináveis em que toda esta obra acaba depositada e esquecida. As bibliotecas são tão extensas, os seus corredores tão longos e labirínticos que ninguém ousa visitá-las, foram projectadas com esse propósito.

No meu país não temos telefones, só escrevemos cartas. Não existe televisão mas fazemos muito cinema, teatro e televisão também só que os filmes nunca são terminados e as cenas sucedem-se, as peças de teatro são ensaiadas sem término, os programas televisivos são gravados e regravados mas nunca são lançados. Assim é toda a arte no meu país.

Ensaiamos, experimentamos, pensamos e concebemos mas nunca terminamos, a obra é por definição inacabada, as obras não são lançadas apesar de termos sempre datas planeadas para o fazer, datas essas que se prolongam pelos séculos. Temos grandes movimentos artísticos, orquestras, estúdios, ateliers, escolas… As orquestras não actuam, ensaiam; os pintores não expõem, experimentam porque nenhum artista consegue obter aquilo que imagina, a perfeição não converge, então para sempre ficam no estado de concepção.

Ninguém sabe ao certo quantas pessoas existem neste país meu. Como as pessoas fazem um sem fim actividades e ofícios e ocupam uma infinidade de títulos e cargos e hierarquias, toda a gente é tudo e nada, parecemos ser biliões mas podemos não passar de uma dezena, ninguém sabe.

No meu país as pessoas têm muitos nomes, como se sentem presas por apenas um, adoptam milhares de nomes, não há minuto que passe sem que um novo nome lhes surja.

No meu país as pessoas não morrem e são sempre jovens fisicamente. Acontece que um dia ficam simplesmente catatónicas. Não as enterramos porque estão vivas, então ficam nas ruas como estátuas, a nossa única arte que se conclui porque ninguém distingue estas pessoas de objectos inertes.

No meu país não acreditamos em Deus mas temos grandiosos templos de todas as religiões; tal como a maioria dos sítios neste meu país, encontram-se quase sempre vazios.

As pessoas passam os dias nas ruas vazias e extensas a discutir e a passear.

São as crianças que constroem o meu país. De noite, quando saiem, invadem uma qualquer zona e erigem quarteirões, ruas e bairros inteiros numa só noite.

Os serviços secretos que tudo controlam não as conseguem ver, aliás a partir dos 12 anos, as crianças no meu país são adultas e deixam de ver as crianças, os adultos não as vêem, só se recordam delas da sua infância.

Por isso ninguém sabe onde vivem, donde vêm e quem são. Rumores falam dos esgotos monumentais mas ninguém lá vai.

As pessoas do meu país como conquistaram a imortalidade, não têm necessidades fisiológicas. Não comem, não defecam, não nada. Ainda assim temos casas de banho, hospitais e todo o tipo de estrutura associadas à natureza do animal humano. Essencialmente assim acontece porque temos que ter profissões.

Por exemplo, temos médicos mas nenhum deles saberá intervir se necessário. São sábios e escrevem longos tratados e extensos artigos profusamente descritos até ao mais ínfimo detalhe, ilustrações, cálculos e deduções mas nunca ninguém na realidade experimentou nada.

Não temos cemitérios, as pessoas vão ficando pelas ruas, tiram-nas do caminho e usam-nos como ornamento nos parques e jardins porque não morrem, ficam catatónicas.

Há muitas mães no meu país mas nenhuma delas sabe quem são os seus filhos. Não se lembram que os tiveram e como tal nem sabem que o são, mães. Os adultos no meu país não se despem, vestem sempre a mesma roupa, trajes elaborados que diferem em estilo, era e espírito mas que são sempre cuidadosamente elaborados mesmo que fossem andrajos. Podem andar sempre imutáveis porque não possuem necessidades fisiológicas.

Tivemos três guerras no meu país. Tivemos uma primeira guerra ideológica que terminou num armistício que fundiu as forças opositoras.

A segunda guerra foi um artifício de propaganda, nunca tendo ocorrido na realidade. A imprensa anunciou a guerra, as tropas foram mobilizadas e todos acreditam que houve porque somos um país tão grande que toda a gente ouviu falar de alguém que esteve nessa guerra fora das nossas fronteiras mas ninguém conhece ninguém que realmente lá tenha estado até porque nunca ninguém neste país se aproximou sequer das fronteiras do nosso extenso território. Foi uma guerra inventada pelos serviços secretos.

Por fim, a última guerra que nos assolou foi uma invasão estrangeira. O inimigo enviou milhões de soldados mas nunca os suficientes para fazer face aos nossos territórios intermináveis, às nossas cidades infinitas, havia sempre mais ruas, mais esquinas, mais avenidas e o exército do inimigo acabou por se desfazer na nossa imensidão como o exército francês na Rússia. Ninguém sabe porque fomos invadidos ainda hoje, muito se escreve sobre o assunto.

Diz-se à boca pequena que vivemos em guerra civil permanente mas ninguém sabe ao certo entre quem e não há sinais óbvios de guerra civil. Dizem os rumores que se deve à intervenção dos serviços secretos na gestão do conflito, que cuidadosas operações de limpeza e abafamento são levadas a cabo e nesses sítios as pessoas supostamente discutem mais ou ficam silenciosas e as ruas supostamente são mais limpas, mas na realidade não passam de boatos porque ninguém neste país sabe usar uma arma ou levantar os braços para agredir quem quer que seja mas tornámo-nos vítimas do nosso poder sem rosto.

Não há carros no meu país. Só andamos a pé. Os carros não servem para nada precisamente porque o país é tão extenso que ir a qualquer lado a pé ou de carro é irrelevante, como somos imortais o tempo não significa nada para nós e como tal nunca temos muita pressa de chegar onde quer que seja. Há ainda assim, quem tente atravessar o país inteiro a pé.

Não conhecemos outros países embora tenhamos milhões de embaixadores, diplomatas, geógrafos, mapas e estudos étnicos mas nunca ninguém foi a lado nenhum na realidade. Ficámos fascinados aquando da última guerra precisamente porque fomos visitados mas ainda hoje há dúvidas se esse invasor não tenha surgido meramente dentro do nosso país a partir dos fenómenos de diferenciação que já descrevi.

Há auroras boreais no meu país. Como as realidades não terminam neste meu país, não temos museus porque simplesmente não percebemos o conceito. O tempo não começa nem termina nem se move, não há velho nem novo, há sempre mais, mas tudo o que houve se mantém. Não sabemos o que é antigo, não sabemos o que é não ser o que já se foi. Existe sempre tudo.

André Cunha