Mittwoch, 17. Februar 2010

A Cultura do Sofrimento

Em posts passados viram-me a mim, ateu, a defender o legado moral do Cristianismo.
Se bem se recordam, expliquei que as noções éticas básicas da nossa Civilização derivam da palavra do Novo Testamento, que revogou o "temor e tremor" a Deus da lei mosaica e institui como princípio fundamental o amor ao próximo, a tolerância, a dignidade da pessoa humana, e a clemência. Sem a formatação de pensamento que o Cristianismo nas suas duas variantes principais da Europa Ocidental forneceu na infância e juventude de praticamente toda a gente durante séculos, as concepções morais defendidas pelos filósofos mais influentes desde o Humanismo não teriam existido.
Locke não se teria lembrado de um estado de natureza em que não existe sociedade e o Homem vive em paz, colhendo os frutos da terra, até conhecer o crime e a cobiça e ter de se organizar e do suor do seu rosto comer o pão, e ver-se forçado a instituir um contrato social em que abdica da sua liberdade absoluta, que todos os homens terão em igual medida, para dar corpo a uma sociedade com regras aplicáveis a todos. Isto não soará vagamente ao pecado original e à expulsão de Adão e Eva do Paraíso? A corrupção das leis da natureza levando à justificação das leis do Homem?
Kant não se teria lembrado do imperativo categórico sem os ensinamentos de Cristo: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti, por exemplo.
Em suma, o Cristianismo deu-nos valores éticos incontornáveis que hoje, em grande parte, tomamos por absolutos independentemente de sermos crentes ou não - pura e simplesmente, porque fazem parte da nossa cultura e todo o nosso pensamento neles é formatado, como foi influenciado o pensamento das gerações antes de nós.
Contudo, não é da importância do cristianismo no pensamento de um ou outro que vos quero falar. Já noutras alturas vos disse o que acho de positivo na mundividência cristã, que tanto influenciou a nossa civilização. Mas hoje, vamos olhar para o outro lado da moeda. Hoje, quero dizer-vos aquilo que acho de mais abominável no Cristianismo, sobretudo no Catolicismo, e que considero que deixou cicatrizes graves e feias na nossa cultura.

Chamo-lhe a Cultura do Sofrimento.

O ponto de partida tem de ser este: Como as restantes religiões monoteístas, o Cristianismo - e em particular, o católico - é uma religião exigente. Deus - ou, para quem Deus seja secundário, a Igreja Católica - espera muito de ti, coisas difíceis, abstinências duras, comportamentos correctos a toda a hora, e muitos, muitos sacrifícios pessoais como prova de fé. É uma religião que coloca muita pressão sobre os seus crentes. (ex: Mateus, 5, 48: «Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial.»)
A violação dos deveres impostos pelo vínculo a Deus e à Igreja tem consequências não só na vida eterna, mas na vida temporal: o castigo perpétuo e constante pelas infracções cometidas é a culpa, que atrofia, a longo prazo, o estado de espírito de todos os que sentem que estão a violar os seus deveres morais e religiosos.
Ora, ainda que se assista a um grossamento das fileiras do ateísmo no último século, a verdade é que o sentimento de culpa está para ficar; e 2000 anos de educações marcadas pelas compreensões cristãs daquilo que é eticamente correcto só deixaram mais vincada na nossa mentalidade a - falsa - naturalidade do sentimento de culpa sempre que nos pareça que não fizemos sacrifícios suficientes ou que não conseguimos estar à altura do que era esperado de nós.
Vivemos numa Cultura de Sofrimento; numa cultura que se alimenta da ideia de que todo o sacrifício é um bom sacrifício, e que uma pessoa que se sacrifica até aos ossos e se dedica exclusivamente a servir os outros e a torná-los felizes é uma pessoa generosa e altruísta, e não um idiota. Serei o único a pensar que o facto de, na nossa civilização, palavras como selfless têm conotação positiva é algo de absolutamente perverso?
É isso que o Cristianismo trouxe de pior: a relativização do sofrimento individual face à satisfação alheia, de Deus, da Igreja, da Família, ou da comunidade. Alguém que não estiver disposto a aturar todo e qualquer sacrifício é considerado um egoista; e alguém que não se vir na obrigação de sofrer para agradar aos outros é posto de lado.
Vivemos numa cultura com um lado perverso: aquele que nos diz que, quanto mais nos reduzirmos e eliminarmos em prol dos outros, melhores pessoas somos; e que o sacrifício e o sofrimento, por mais inúteis que possam ser, desde que bem intencionados, são algo de bom.


«Nosso Senhor foi espancado, torturado, chicoteado, pontapeado, cuspido, humilhado e pregado a uma cruz para lá morrer em agonia - e fez isto por ti e por todos nós. E tu, meu egoísta nojento, o que estás disposto a sofrer pelos outros?»

5 Kommentare:

Anonym hat gesagt…

Filipe! És um discípulo de Sade, relativamente à segunda parte da exposição.

Hélder Santos Correia hat gesagt…

Olá Filipe. Se me permites gostava de te dizer algumas coisas(embora não todas)

"Ser Cristão é fazer profissão de alegria" Gal 5,22

Quando comecei a ler pensei que viesses criticar o facto de o cristão do séc. XXI não dispor nada em prol do outro; que é um ser egoísta e que, apenas, se diz seguidor de Cristo porque fica bem dizer-se que se é "beato" e ir a umas "missas" é muito bonito. E ainda que para meu espanto, estava muito tentado a dar-te razão "a priori".. mas afinal não.
Afinal estava enganado; e afinal tocaste em alguns pontos com os quais não posso concordar.

É verdade, que para um Cristão o sofrimento tem um valor essencial na sua vida - obviamente, que não estou a falar de castigos corporais e coisas do género cujo objectivo é pura e simplesmente fazer sangrar; Eu não sou mais ou menos santo se todos os dias bater com a cabeça 7 vezes na parede.

Não.O sofrimento, para nós Cristãos, não é sofrimento puro e duro é "Cruz". Porque a cruz não se esgota no sofrimento.
Ora, eu diria que isto altera tudo. Porquê?
bom, porque a verdadeira cruz é levada com alegria e amor. Já não é mais o sofrimento de que falas. é uma outra coisa!

Deus é amor e se a cruz não for levada com amor, não pode vir de Deus. Isto é obvio.
E para além disso, Deus pede-nos essencialmente que sejamos felizes. E eu acredito que ele quer de facto que o sejamos sempre. tantos outros exemplos haviam para te mostrar que Deus não busca o sofrimento do Homem, e que esta tua linha de pensamento é tão facilmente contraditada.

Relativamente à pressão sobre os crentes de que falas, não desminto. Mas é natural que assim seja. Oh Filipe, a um tipo que tem muito para dar a uma sociedade, essa sociedade pede-lhe para que dê muito, estranho seria se sucede-se o contrário! E a lógica de Deus não escapa a esse raciocínio: "a quem muito foi dado, muito será pedido".
E isto é pressão? é. Mas uma pressão responsável e saudável. Para o nosso bem e para o bem dos outros.

Porém, Deus não deixa sozinho o Homem. Daí que tenha enviado o Espírito Santo. Com isto nada é igual. É que Deus, como nos ama, sabe que para nos salvarmos temos que carregar a cruz, mas envia-nos o Espírito, precisamente para não cairmos na orfandade.

Mais. Dá-nos a Igreja. E também, porque não, todo o Mundo.

Mas a mensagem de Cristo é tão mas tão radical que depois de tudo isto, desce até nós e sussurra: "vós que andais cansados e oprimidos, vinde a mim. O meu jugo é suave e a minha carga leve". dito isto, o sofrimento deixa de carregar, as exigências deixam de aprisionar e sem dar por ela o caminho que era cheio de espinhos em brasa, tornou-se num campo verde e que para quem acredita é Único, porque embora saibamos que ele tem alguns buracos e sacrifícios, sabemos que não vamos sozinhos e com um Destino no horizonte.

Caro Filipe, depois disto tudo, percebo perfeitamente que não entendas o que disse. Também não espero que o faças.
Para um ateu é difícil perceber este tipo de coisas, sei-o bem. Mas ainda assim não podia deixar de to dizer, pode ser que fique aí uma réstia d'Ele. ;D

E como deves calcular estou a escrever aquilo que eu acredito que devia ser feito, não que o faça sempre.


Grande Abraço!

Filipe hat gesagt…

Grande Hélder,

foi um prazer ler o teu comentário. É de perspectivas diferentes e sensatas que precisamos.

Lamento, porém, que nem todos tenham uma visão tão clara.

E continuo a achar, como noutras vezes defendi, que o Cristianismo nos trouxe valores fundamentais sem os quais nada teria sido possível - é simplesmente uma enorme tristeza que tenham sido tão frequentemente mal interpretados. É pena que nem todos os que se dizem cristãos tenham lido e reflectido sobre a mensagem de Cristo.

Continuo a achar que está enraizada na nossa cultura a sobrevalorização do martírio individual. Repara: entre os grandes exemplos de conduta para os católicos - os Santos - dificilmente encontrarás um que tenha tido uma morte agradável. Ou mais: muitos serão os casos de Santos que nem fizeram assim tanto em vida, mas pela sua morte horrível e pelo seu sofrimento atroz se tornaram em paradigmas de rectidão e integridade. A mim custa-me a compreender isso: Ou as suas vidas são valorizadas pela sua - por vezes muito modesta - contribuição para a Humanidade/Cristandade ou são antes as suas mortes que os tornaram num exemplo a seguir.

Por outro lado, o que dizes sobre levar a cruz com alegria, com confiança e amor em Deus, no fundo, só confirma aquilo que eu penso: O catolicismo e as culturas que este influenciou apostam no sofrimento que uma alegria religiosa ou moral justifica. O sentimento de cumprimento voluntário de um dever e de uma resposabilidade genérica de se martirizar em prol dos outros, chamando-lhe "altruísmo" parece-me algo de desrazoável e inútil.

Mas, lá está: Crenças não se discutem, opiniões sim:) e é esta a opinião que não me custa formar olhando de fora.

Grande abraço!

Hélder Santos Correia hat gesagt…

Ao escrever o comentário, claro que não esperava converter-te, Filipe.
Não é que não tenha pena, mas dá gosto ver alguém que é coerente na maneira de pensar, ainda que seja completamente contrária à minha. E tu, mal ou bem (quem sou eu para te julgar) foste coerente mais uma vez com aquilo que defendes.

é mesmo isso que tu dizes e a discussão aclara a Razão; estamos a discutir a mesma coisa, mas de modos diferentes de a olhar. É ao mesmo tempo interessante e causador de admiração que aches "desrazoável e inútil" a vida de um Santo, mas lá está é o teu parecer.

Abraço

Anonym hat gesagt…

"No man is an island,
Entire of itself.
Each is a piece of the continent,
A part of the main.
If a clod be washed away by the sea,
Europe is the less.
As well as if a promontory were.
As well as if a manner of thine own
Or of thine friend's were.
Each man's death diminishes me,
For I am involved in mankind.
Therefore, send not to know
For whom the bell tolls,
It tolls for thee."

John Donne

Espero que este poema ajude a perceber porque vale a pena sofrer pelos outros, mesmo para um ateu.
Não é Deus ou uma qualquer recompesa divina...É apenas reconhcer que fazemos parte da humanidade e, por isso, o sofrimento dos outros é, também, o nosso sofrimento.
E tudo isto é anteiror ao Cristianismo. Já Cícero se referia à "humanitas" como a comunhão de sangue entre todos os homens e, partindo daí, considerou haver uma exigência de benevolência para com aqueles participam da natureza humana.
No entano, não deixo de considerar o sofrimento tal como é preconizado pela Igreja Católica de "castrador", já que o que defende uma aceitação completa de todo o sofrimento pois haverá uma recompensa depois da vida...
Este sofrimento é completamente inútil, já aceitar sofrer em prol de um outro ser humano, ajudando-o, parece-me ser uma das mais nobres características do homem.